quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Um outro mundo é possível!

Um dia foi-me proporcionado viver uma experiência única.
Parti com uma bolsa de estudo para a Bulgária, onde vivi de 1976 até 1987.
Durante onze anos tive acesso a uma formação multifacetada, que ultrapassou largamente o mero aspecto académico e profissional, em igualdade de direitos e deveres quer com os cidadãos búlgaros, quer com os cidadãos de mais de cem países com quem tive o prazer de conviver.
Na “Cidade Universitária” de Sófia vivíamos mais de 20.000 jovens de todos os continentes. Na minha residência, onde viviam búlgaros, tunisinos, nicaraguenses, vietnamitas, polacos, nigerianos, coreanos, checos, angolanos, dominicanos, laosianos, cubanos, etc., partilhei o quarto com o palestiniano Samer Hidjaui. O tal que, quando expelia “um gaz” durante a noite, me sussurrava entre dentes: “Paulo, ainda hás-de sentir a falta da minha música!” e soltava um “ohhhhhhh” de alívio...
Ou o Joel Libombo, moçambicano, mais tarde ministro no seu país, que um dia me veio pedir o recentemente editado livro “O Partido com paredes de vidro” de Álvaro Cunhal.
E o inesquecível dia em que morreu Samora Machel e a direcção dos estudantes moçambicanos nos pediu que os ajudássemos a organizar as cerimonias fúnebres...
Estar ali, foi viver e crescer num grande caldeirão de culturas. Almoçar com os que se abstinham da carne de porco, jantar com os da “vaca sagrada”. Conhecer o recente guerrilheiro “nica” que dormia vestido e calçado, “não fosse algum contra aparecer”. E ouvir as histórias da magia negra antes de deitar. Ou ainda ouvir cantar o Corão num sábado à noite, enquanto bebíamos chá preto. Tudo como se estivéssemos ali a dar um grande abraço ao mundo e sentíssemos um certo conforto inexplicável.
De todos tenho um pedaço: na formação e no coração...
Enquanto presidente da Organização Nacional dos Estudantes Portuguesas, tive a oportunidade de participar, creio que em 1984 numa conferência de estudantes estrangeiros, na qual apresentei uma proposta que tive a felicidade de ver aprovada por unanimidade e até aclamação. Era simples a formulação, mas profundo o conteúdo: “Nós, representantes dos estudantes estrangeiros na Bulgária de mais de cem países, uns perante os outros e todos perante o povo búlgaro que nos acolhe, assumimos solenemente o compromisso de que jamais utilizaremos os conhecimentos e a formação aqui adquiridos contra a paz e contra os nossos povos.”
Nestes tempos em que os “polícias do mundo” tudo invadem e tudo justificam em nome de uma certa “civilização ocidental”, faz-me bem trazer à memória o que realmente para mim faz sentido. É verdade que outro mundo é possível. Eu senti-o e vivi-o!
E tendo nós memória e querendo dela fazer uso, estaremos quem sabe mais imunes a todas as “verdades” que nos vendem diariamente.
Tantos anos depois, não vou esquecer que nos conhecemos porque existiu um país – a Bulgária socialista, que nos abriu as portas e nos recebeu como se fossemos seus filhos, tornando-se para sempre a nossa segunda pátria.
Não sei se mais alguma vez me cruzarei com aqueles amigos de muito estudo e imensas aventuras. Mas, gostaria que soubessem que continuo fiel ao nosso compromisso!
Porque aprendemos juntos que outro mundo é possível!
(Editado no semanário "Expressões")
 
 

5 comentários:

znobre disse...

velho,
apesar de não ter vivido tamanha experiência, acredito também que "um outro mundo é possível"
continuação de bons relatos.

Unknown disse...

Conheci-te antes desta experiência que não duvido ter sido muito enriquecedora. Voltei a encontrar-te depois. Na essência és a mesma pessoa. Fiel a ti próprio e aos teus ideais.
Embora com visões diferentes do caminho a percorrer acredito que o mundo diferente que idealizamos é o mesmo. Antes e depois da tua estada na Bulgária sempre te respeitei por inteiro e sempre me senti, por ti, respeitada. Isto já é "um outro mundo", não é?

Contacomigo disse...

Aqui pode-se ver mais sobre alguém que pode sublinhar tudo aqui escrito.

O abaixo assinado
http://www.fortunatos.de

Felix disse...

Muito bom o texto, fiquei aqui a imaginar esta experiência de integração e contato com outras culturas. É pena que tanta gente na Europa despreze de forma total o conhecimento e a vida que o Outro pode trazer para cá.

Felix disse...
Este comentário foi removido pelo autor.